sexta-feira, maio 22, 2009

BOM DIA

Rita

Os pensamentos da noite anterior não lhe deixavam a mente. Seu olhar esquivava a si própria. A imagem mal dormida já enchia-lhe a imaginação, não haveria necessidade de enfrentar a realidade fria do espelho. Por mais que sua auto-estima rastejasse naquela manhã, ainda haveria de ser mais condescendente que o próprio reflexo. Penteava seus cabelos lentamente, o ato mecânico, repetitivo; os dedos entre os finos fios sentiam a gordura que acumulara nesses dois dias. O olhar vidrado, opaco, fitava furtivamente uma imperfeição do espelho. Aquele ponto ferrugem maculando a superfície lisa e uniforme, seria o reflexo de um mundo imperfeito? Seria sua própria imperfeição, que impregnara-se ali? Tinha a impressão que estava maior que no dia anterior. Um câncer, que iria crescer, se alastrando e tomando conta de sua imagem, até ela própria não se reconhecer? Talvez isso. Talvez bobagem. Precisava sair.

Aquele início de resfriado não lhe deixava sentir o aroma do café que acabara de preparar. Tanto melhor. O gosto estava horrível. Porque diabos ainda lhe sobrava o paladar? Que esses vírus tomassem de assalto todos os seus sentidos de uma vez! Levassem também seus pensamentos. Ah, que vacina seria a gripe para a solidão.

Uma leve lufada deu-lhe consciência de sua semi-nudez. Aquele vento frio correu sua espinha até seu âmago, pedacinho de seu corpo que só lembrava que existia em dias como aquele. Ali, acima do estômago, abaixo do peito, onde não há órgão vital algum, naquela cavidade onde o vazio reverbera. Fechou os olhos e sentiu. Teve vontade de chorar. Cobriu sua incasta existência com a primeira peça que surgiu ao abrir o velho armário. O cheiro de naftalina causou-lhe um especial asco, como algum terror suicida. Que espécie era? O nojo de si mesma misturou-se a auto-piedade. Cruz credo!
Inspirou fundo. O ar de mofo do apartamento deu-lhe coragem para abrir a porta. Chamou o elevador sem vontade. Ele veio. A porta se abriu e, mesmo sem querer, teve de enfrentar a si mesma. As marcas de ontem, a perspectiva de hoje, tudo ali, profundamente vincado em olheiras. Penteou as sobrancelhas, esticou a roupa, estufou o peito. Libertou-se de si mesma no térreo, ali, nem no subsolo, nem no alto, ali, no térreo, se sentia melhor. Cinco passos, quatro palavras: Bom dia dona Rita! Apertou o passo, cerrou os ouvidos, passou. O azul do céu contrastou o cinza de sua alma. Ali, sob a luz do sol matinal, primaveril, vestiu, por fim, sua melhor roupa. Com a seda branca de um sorriso entrou no carro da amiga. Distribuiu palavras gentis, quis dividir toda sua felicidade, tirou um CD da bolsa e inundou o veículo com uma alegre melodia. Ouviu as queixas da amiga e com a propriedade dos sábios, agraciou-lhe com os melhores conselhos.

Um comentário:

Paula Zogbi disse...

Esse é o meu amor!
Entre outras coisas, adoro o jeito que ele escreve e descreve.