Era a quinta vez que acordava. Abriu os olhos com alguma cerimônia. Seu corpo padecia e suas pálpebras movimentavam-se vagarosamente em solideriedade. Dessa vez havia luz – mais um dia – pensou. Estaria mais longe ou mais perto da morte? Cerrou os olhos novamente, agora com uma urgência que só o medo pode causar. Respirou fundo, sentindo os ossos tremerem de dor, por fim, encarou o teto branco, a luz fria e branca, as paredes brancas. Não havia muito o que fazer, deu bom dia a seus únicos companheiros, o soro, o tubo de oxigênio, o medidor de sinais, a sonda, os drenos, ah...os drenos, quantos são? Dois, três, não sei.
É incrivel conseguir sentir algo mesmo afogado em analgésicos. Mas ele sentia. As máquinas, a borracha, o veneno correndo por suas veias e a dor que se escondia por detrás. Sentia uma irremediável solidão.
Tentou se levantar. Sem resposta.
Mexeu os dedos dos pés ou, pelo menos, achou que o fez. Tentou mover os braços, o máximo que conseguiu foram as mãos. E no compasso do seu coração, que pulsava ressoando em bips ásperos, tocou as teclas de seu piano. Foi então que Chopin invadiu a fria UTI, inundando com delicadas notas todos aqueles tubos, fios e horrores. Fechou novamente os olhos e dançou, deixando escapar por instantes sua inescrutável melancolia, a cadência do nocturno o levou. Já ia se entregando ao sono ou às trevas, o que fosse, quando ouviu o barulho da porta. Quem seria? Visita ou agulhas?
- Bom dia Dr. Reinaldo, vamos ver como estão as coisas hoje?
Agulhas...já sentia falta delas, rompendo sua pele, extraindo um pouco mais de sua vida. Mas eis que existe, vermelha, envidraçada, milimetricamente contemplada, só para lembrar que resiste, que ainda é humano em meio a tantas máquinas. Só não podia suportar aqueles esparadrapos tentando cobrir o roxo-amarelado de seus braços, sem falar que coçavam. A que horas vão começar a coçar hoje? Deixem logo minhas veias abertas, meu sangue a escorrer, a marcar meus últimos dias, a imortalizar minha obra em lençois esterezilados.
Falar não podia. Achou melhor desse modo, a língua calada pouparia suas energias, o verbo contido não ofenderia ninguém e a enfermeira poderia continuar assim a assepsia de sua matéria mortal. Gaze, sabão, paciência e um pouco de nojo. De sua parte, a vergonha e a impotência mudas.
- Vou deixar você bem cheiroso, afinal hoje você tem visitas muito especiais.
Qual remédio que nada, palavras...palavras muito bem prescritas. Quem poderia ser? A mulher...essa já morreu, o irmão...tanto tempo, a filha, sim, a filha. E quem mais? Estava só...enfermeiras...lamentou não poder oferecer biscoitos, impossível receber bem nessas condições. Ela gostava tanto daqueles biscoitinhos. Como estava linda, cabelos lisos e castanhos descendo aos ombros, os olhos da mãe, não havia como não se apaixonar por olhos assim.
Raquel disse algumas palavras, o que importava? A música de sua voz não trazia palavras, só lembranças e sonhos bons. Os primeiros passinhos, o sorriso largo, a gargalhada fácil, os olhinhos vidrados naqueles doces da vitrine.
Uma lancinante dor o fez voltar àquela UTI, seu rosto se contraiu e uma lágrima viajante carregou suas memórias. Estava consciente. Seria aquela a despedida? O olhar de ternura da filha não o contradizia, aquela compaixão velada, a pieguice sentimentalista da morte rondava seu leito.
Sentiu a delicada mão apertando a sua, conduzindo-a para um outro mundo. Lá estava ele, no futuro, a mão sobre o ventre da filha. E nesse instante de improbabilidades, sentiu seu neto e ele o sentiu. A filha riu-se da eloquëncia do encontro. Ele riu-se da situação. O hospital não era tão ruim assim, o dia não era tão entediante assim, não havia solidão. E...não, não era a despedida, afinal, muitos biscoitinhos esperavam na despensa de casa.
2 comentários:
fico tocada com tamanha sensibilidade que você consegue transformar em palavras. esse seu texto me tocou ainda mais do que os outros. gostei muito mesmo! parabéns!
muito bom!! Gostei do texto dos poetas também. Escrever é uma dádiva, ler também... beijos!
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