quarta-feira, agosto 19, 2009

BOM DIA

Renata

Seu corpo ainda sentia o carinho e a brutalidade. A mão pesada sobre seu seio parecia querer ouvir batimentos e declarações eternas. Inspirou, suspirou, sorriu. Quantos sonhos tivera esta noite, mesmo sem ter dormido um minuto. E agora, ainda sentindo o perfume da madrugada em sua pele, despertara para a vida novamente. Sim, estava sentindo, ardendo e amando. Mas já havia passado por tantas desilusões...não! Desta vez era diferente, ela sabia que era diferente. Não haveria sorriso se fosse mais um. E o gosto na boca era outro.

Levantou-se, fazendo questão de exibir sua nudez. Parou na frente do espelho, perdoando-o pelos anos de rude frieza. Tocou onde havia sido tocada, contemplou as marcas desejando que fossem cicatrizes.

A água quase fria limpava a sujeira de outras noites. Estava feliz, amando. A esponja era a mão que repousara sobre seus seios e novamente a seduzia, em arrepios e lembranças. Mas, e se ele acordar agora?

Terminou o banho e correu para a cozinha. Leite quente, pão aquecido, bolo e geléias a caminho do quarto. Hesitou. Não, não podia entregar-se assim, de bandeja. Sua perna tremeu, não mais pelo cansaço do amor. Sentiu medo mesmo. E lá estava ela, parada no corredor, seminua, carregando um peso que não sabia suportar. Aquela dor, aquele buraquinho no meio do peito, começava a arder novamente. Chorou baixinho. Sentiu saudades de antes de ontem.A dor e a solidão são reconfortantes. A felicidade é uma eterna expectativa de desilusão. Sentiu o corpo tremer, a pele arrepiar, a barba por fazer roçando-lhe a nuca.

Num instante sua fantasia estava no chão, junto com a bandeja, o leite derramado e a porcelana quebrada. Sentiu o desejo tocando-lhe novamente, quente e crescente. Virou-se, entregou-se e chorou novamente, cheia de prazer e pavor.

BOM DIA

Felipe

O quarto tem cheirinho doce. Alguns raios de sol o invadem sem muita vontade. Um beijo molhado estala em sua bochecha. Ao abrir os olhos a encontra sorrindo. Droga, me pegou. Fecha os olhos novamente. Sente as delicadas mãos percorrendo seu corpo, formiguinhas. Cerra ainda mais os olhos sem conseguir evitar que suas covinhas o denunciem. Ah, não, não tão fácil. Ontem fez tudo direitinho, do jeito que tinha de ser, escovou, penteou, limpou, arrumou, dormiu. Agora era a sua vez. Enrolou-se no edredom, agarrou-se ao travesseiro, isolou-se em pensamentos. Não ouviu mais nada, as formiguinhas se foram, derrotadas pela esperteza, pela força e talvez por algum encantamento, poção, fada madrinha que passava por ali. Espiou cuidadosamente, sem fazer movimento ou barulho. A barra estava limpa. Os bandidos, monstros, do mau, sumiram.

Sabia que sua vitória não poderia ser comemorada com festins, zombaria e gritos. Teria que permanecer ali, imóvel e triunfal, até que as testemunhas pudessem registrar seu feito nas histórias que fariam seus filhos dormir.

Ouviu um barulho, nem tremeu, apenas congelou. A luz quente começou a lhe atingir. Não é justo. E o inimigo, implacável, quebrou todas as regras de um combate honesto. A voz suave contrastava com seus atos déspotas. Porque acordar, porque o dia está bonito, porque não posso atrasar? Não é justo. Porque hoje é o dia do jogo de futebol. Pulou da cama, olhos arregalados. Depois voltou. Refez a cena, agora demonstrando que não havia sido totalmente derrotado. Escovou, penteou, limpou, arrumou, sempre resmungando. O futebol era só depois da aula, mas poderia treinar no recreio. Pensava nas jogadas, adversários caídos, uma bola incandescente e gol. Tomou grandes goles de leite com chocolate e carinho. Pediu uma ou duas coisas que lhe vieram à cabeça e que sumiram com a rapidez de um talvez. Na esperança de mais uma batalha, ligou a TV. Desejou mais um brinquedo e teve que ir, de perua, enfrentar a cruel realidade de deixar de ser criança.

segunda-feira, agosto 17, 2009

Esmola

Vagam pelas noites vazias. À companhia, piolhos e o ronco da barriga. Pés imundos, casco duro, acostumados a porrada, escarro e descaso. Ao andar cambaleante e decidido, precede o anúncio da brisa, que revela a putrefação do corpo e a degradação do ego.
São loucos que dormem enquanto trabalhamos, largados na calçada. O cobertor de papelão anuncia nossos sonhos de consumo, a nova televisão esconde o que não queremos ver. As feridas expostas, os cancros, as secreções ferem nossos sentidos, nossa moral, nossa razão. É dificil crer que exista alma debaixo de tanto asco. E passamos por eles, cerrando os olhos, os narizes e o coração, fingindo serem apenas assombrações. Mas não são.
A mesma matéria, a mesma centelha. E eis que são espelhos retorcidos. E o que nos mostram, a não ser quem somos?
E nessa estrada infindável, vejo, com esperança, que estão à minha frente, marcando o caminho com seu sangue impuro, deixando-o como esmola. Eles que estão tão perto, que já abandonaram-se ao destino, será que podem dar alguma notícia quando chegarem lá?

Suspiro

"O sol nasce mais uma vez a quem ainda pede perdão."
Com esta frase resoluta, encerrou a discussão, fechou seu livro de memórias e foi-se. Para sempre.
Ocaso de uma jornada, momento decisivo. A espera de todos. À espera de todos.

Quem já a viu, sabe. Eu estive ao seu lado e sei.
Ela já me acariciou com cantigas ninar. Não me despertou, permitiu-me continuar dormindo e sonhando uma vida.
Anos depois, o reencontro. Ríspido momento, cravou em meu coração um alívio e uma dor nunca imaginados. Seu vulto frio gelou minha espinha e ainda hoje, nas noites mais escuras sinto sua delicada respiração dizer-me: em breve. E me apavoro em perspectiva. O que é breve para alguém que conhece a eternidade?