Felipe
O quarto tem cheirinho doce. Alguns raios de sol o invadem sem muita vontade. Um beijo molhado estala em sua bochecha. Ao abrir os olhos a encontra sorrindo. Droga, me pegou. Fecha os olhos novamente. Sente as delicadas mãos percorrendo seu corpo, formiguinhas. Cerra ainda mais os olhos sem conseguir evitar que suas covinhas o denunciem. Ah, não, não tão fácil. Ontem fez tudo direitinho, do jeito que tinha de ser, escovou, penteou, limpou, arrumou, dormiu. Agora era a sua vez. Enrolou-se no edredom, agarrou-se ao travesseiro, isolou-se em pensamentos. Não ouviu mais nada, as formiguinhas se foram, derrotadas pela esperteza, pela força e talvez por algum encantamento, poção, fada madrinha que passava por ali. Espiou cuidadosamente, sem fazer movimento ou barulho. A barra estava limpa. Os bandidos, monstros, do mau, sumiram.
Sabia que sua vitória não poderia ser comemorada com festins, zombaria e gritos. Teria que permanecer ali, imóvel e triunfal, até que as testemunhas pudessem registrar seu feito nas histórias que fariam seus filhos dormir.
Ouviu um barulho, nem tremeu, apenas congelou. A luz quente começou a lhe atingir. Não é justo. E o inimigo, implacável, quebrou todas as regras de um combate honesto. A voz suave contrastava com seus atos déspotas. Porque acordar, porque o dia está bonito, porque não posso atrasar? Não é justo. Porque hoje é o dia do jogo de futebol. Pulou da cama, olhos arregalados. Depois voltou. Refez a cena, agora demonstrando que não havia sido totalmente derrotado. Escovou, penteou, limpou, arrumou, sempre resmungando. O futebol era só depois da aula, mas poderia treinar no recreio. Pensava nas jogadas, adversários caídos, uma bola incandescente e gol. Tomou grandes goles de leite com chocolate e carinho. Pediu uma ou duas coisas que lhe vieram à cabeça e que sumiram com a rapidez de um talvez. Na esperança de mais uma batalha, ligou a TV. Desejou mais um brinquedo e teve que ir, de perua, enfrentar a cruel realidade de deixar de ser criança.
Um comentário:
adivinha em que eu pensei o tempo todo nesse texto do felipe?
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