O homem certo acorda, todos os dias, com a certeza do que
vai acontecer. Abre as portas do armário e, sem hesitar, escolhe as roupas que
levarão seu corpo para o destino já traçado.
O homem certo orgulhosamente espalha no pão a margarina
enriquecida com ômega 3. Não há espaço
para dúvidas no peito de quem sabe o que lhe é melhor. E pensar naqueles que castigam
suas veias com manteiga, ranço de gerações incultas, herança colestérica. Por que não proíbem essas coisas e essa gente
que se mata ou que, se não morre, entope hospitais, engolindo preciosos nacos
dos meus tributos? O homem certo certamente
faria isso se tivesse a oportunidade. Sim, faria.
Todas as manhãs, o relógio do homem certo avança
inexoravelmente e ele, tão ciente do seu papel, tão reto, monta em seu cavalo
metálico e vai. Trânsito. A maioria não precisaria estar ali agora - pensa, com
plena razão, o homem certo -, passeando a essa hora, divagando ao volante, indo
a destinos desimportantes.
O homem certo também para em semáforo. Por que aqui? Não há
pedestres aqui, nunca, nas duas vezes ao dia que percorre este trecho da rua.
Indubitavelmente alguém ganhou com a implantação desse absurdo. Avança. Veja
como fluiria naturalmente se não houvesse. Cem metros adiante outro há.
E neste curto espaço de alfalto e tempo, o homem certo ouve
que o PIB cresceu menos que o esperado.
Ah, mas ele já esperava por isso.
Fossem tomadas as medidas macroecônomicas que, entre um uísque e outro,
recomendou a quem tivesse ouvidos, o desastre decerto seria evitado.
Mas vai acontecer, conclui o homem certo, fruto da teimosia
de quem não consegue enxergar as coisas com tanta clareza, não deveriam estar
lá tais irresponsáveis.
O homem certo trabalha todos os dias como previsto, as
planilhas, as reuniões, os cafés. Executa as tarefas com exímio talento, do
modo que lhe é peculiar. Ele é certo de sua capacidade, isso ninguém pode
negar.
O homem certo tem uma conduta exemplar perante seus colegas.
A secretária por vez esquece de anotar recado e ele, sem vacilar, alerta todo
departamento acerca do absurdo de tal relapso. Gente desqualificada, burra
mesmo, se não fosse tão generoso, mandaria todos embora, seguramente. E no alto
de sua complascência, o homem certo consegue admirar as qualidades das mulheres
ao lado. Pernas bonitas, roupa decotada, silicone decerto, essa gosta da coisa,
não quer discutir o projeto no bar ao lado?
Ele tem um senso de humor incisivo, direto, inquestionável.
Nada pode conter sua inteligência galopante, negros, bichas, pobres ou
mulheres, aquelas mesmas do bar ao lado, tudo é motivo para uma anedota
certeira. É só uma piada, não é sério, essa onda do politicamente correto é
muito chata, diz o homem certo, repleto de razão.
Quando chega em casa, cansado, o homem certo ainda tem
energias para fazer o que se espera dele. Tem mulher e filhos. E os educa da
melhor forma. À mulher ensina os deveres da casa, aos filhos, as coisas da
vida. Ele sabe muito e muito tem a oferecer.
A filha aparece com o namoradinho. Sujeitinho abusado, sem sombra de
dúvidas, e esse brinco na orelha, é maconheiro. O homem certo sabe identificar
um quando vê. E com a firmeza da plena consciência e absoluto altruísmo, ensina
também ao ex namoradinho o modo certo de ser e agir.
Na hora do jornal, enquanto pulhas, assassinos e dementes
desfilam em alta definição, o homem certo faz sua dissertação, oferece seu
legado. Aquele é um enrustido, a outra, corrupta. Tá na cara, no olhar. Esse
sim, é correto, gente como a gente. Aquele ali não, bandido! Não se misture,
filho. Não se atreva, filha. Não é mesmo, querida?
O homem certo dá aos seus o que tem de melhor, suas
convicções.
E quando deita a cabeça no travesseiro, todas as noites, o
homem certo não precisa pensar, pois tem a certeza do dever cumprido e a
certeza do que vai acontecer no dia seguinte.
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