terça-feira, dezembro 08, 2009

A hora dos homens


Nestes tempos incertos,
em que todos parecem atrasados,
correndo atrás de algo que não sabem o quê,
parece que vivemos em função
de algo que não podemos ver,
nem sentir,
mas que por ironia da evolução,
pensamos que podemos medir.

Temos hora para o dentista,
hora para o médico.
A hora do analista,
e a hora do remédio.

Vivemos atrás de preciosos segundos,
mas estamos atados a essa tal de hora.
Ela possui tudo o que temos.
Ah, e se perdemos a hora, que desespero!
Nos apressamos, xingamos, atropelamos.

Temos a hora do almoço, a hora do jantar,
A hora de levar o carro para revisão, a hora de transar
Temos hora para brincadeiras, hora pro perdão
Até hora para chegar em casa a menina tem.
E o marido também.

Fica essa confusão. Nós temos as horas ou as horas nos têm?

Mas a hora que é comum a todos,
essa inxoravelmente há de chegar,
nem um segundo a mais nem um a menos.


E ninguém sabe a que horas por fim chegará,
                                                                           a sua hora.

quarta-feira, setembro 02, 2009

Sofrer

A dor a gente controla.
Não sente, mas pressente.
Ela está em algum lugar
Esperando um corte para viver.

quarta-feira, agosto 19, 2009

BOM DIA

Renata

Seu corpo ainda sentia o carinho e a brutalidade. A mão pesada sobre seu seio parecia querer ouvir batimentos e declarações eternas. Inspirou, suspirou, sorriu. Quantos sonhos tivera esta noite, mesmo sem ter dormido um minuto. E agora, ainda sentindo o perfume da madrugada em sua pele, despertara para a vida novamente. Sim, estava sentindo, ardendo e amando. Mas já havia passado por tantas desilusões...não! Desta vez era diferente, ela sabia que era diferente. Não haveria sorriso se fosse mais um. E o gosto na boca era outro.

Levantou-se, fazendo questão de exibir sua nudez. Parou na frente do espelho, perdoando-o pelos anos de rude frieza. Tocou onde havia sido tocada, contemplou as marcas desejando que fossem cicatrizes.

A água quase fria limpava a sujeira de outras noites. Estava feliz, amando. A esponja era a mão que repousara sobre seus seios e novamente a seduzia, em arrepios e lembranças. Mas, e se ele acordar agora?

Terminou o banho e correu para a cozinha. Leite quente, pão aquecido, bolo e geléias a caminho do quarto. Hesitou. Não, não podia entregar-se assim, de bandeja. Sua perna tremeu, não mais pelo cansaço do amor. Sentiu medo mesmo. E lá estava ela, parada no corredor, seminua, carregando um peso que não sabia suportar. Aquela dor, aquele buraquinho no meio do peito, começava a arder novamente. Chorou baixinho. Sentiu saudades de antes de ontem.A dor e a solidão são reconfortantes. A felicidade é uma eterna expectativa de desilusão. Sentiu o corpo tremer, a pele arrepiar, a barba por fazer roçando-lhe a nuca.

Num instante sua fantasia estava no chão, junto com a bandeja, o leite derramado e a porcelana quebrada. Sentiu o desejo tocando-lhe novamente, quente e crescente. Virou-se, entregou-se e chorou novamente, cheia de prazer e pavor.

BOM DIA

Felipe

O quarto tem cheirinho doce. Alguns raios de sol o invadem sem muita vontade. Um beijo molhado estala em sua bochecha. Ao abrir os olhos a encontra sorrindo. Droga, me pegou. Fecha os olhos novamente. Sente as delicadas mãos percorrendo seu corpo, formiguinhas. Cerra ainda mais os olhos sem conseguir evitar que suas covinhas o denunciem. Ah, não, não tão fácil. Ontem fez tudo direitinho, do jeito que tinha de ser, escovou, penteou, limpou, arrumou, dormiu. Agora era a sua vez. Enrolou-se no edredom, agarrou-se ao travesseiro, isolou-se em pensamentos. Não ouviu mais nada, as formiguinhas se foram, derrotadas pela esperteza, pela força e talvez por algum encantamento, poção, fada madrinha que passava por ali. Espiou cuidadosamente, sem fazer movimento ou barulho. A barra estava limpa. Os bandidos, monstros, do mau, sumiram.

Sabia que sua vitória não poderia ser comemorada com festins, zombaria e gritos. Teria que permanecer ali, imóvel e triunfal, até que as testemunhas pudessem registrar seu feito nas histórias que fariam seus filhos dormir.

Ouviu um barulho, nem tremeu, apenas congelou. A luz quente começou a lhe atingir. Não é justo. E o inimigo, implacável, quebrou todas as regras de um combate honesto. A voz suave contrastava com seus atos déspotas. Porque acordar, porque o dia está bonito, porque não posso atrasar? Não é justo. Porque hoje é o dia do jogo de futebol. Pulou da cama, olhos arregalados. Depois voltou. Refez a cena, agora demonstrando que não havia sido totalmente derrotado. Escovou, penteou, limpou, arrumou, sempre resmungando. O futebol era só depois da aula, mas poderia treinar no recreio. Pensava nas jogadas, adversários caídos, uma bola incandescente e gol. Tomou grandes goles de leite com chocolate e carinho. Pediu uma ou duas coisas que lhe vieram à cabeça e que sumiram com a rapidez de um talvez. Na esperança de mais uma batalha, ligou a TV. Desejou mais um brinquedo e teve que ir, de perua, enfrentar a cruel realidade de deixar de ser criança.

segunda-feira, agosto 17, 2009

Esmola

Vagam pelas noites vazias. À companhia, piolhos e o ronco da barriga. Pés imundos, casco duro, acostumados a porrada, escarro e descaso. Ao andar cambaleante e decidido, precede o anúncio da brisa, que revela a putrefação do corpo e a degradação do ego.
São loucos que dormem enquanto trabalhamos, largados na calçada. O cobertor de papelão anuncia nossos sonhos de consumo, a nova televisão esconde o que não queremos ver. As feridas expostas, os cancros, as secreções ferem nossos sentidos, nossa moral, nossa razão. É dificil crer que exista alma debaixo de tanto asco. E passamos por eles, cerrando os olhos, os narizes e o coração, fingindo serem apenas assombrações. Mas não são.
A mesma matéria, a mesma centelha. E eis que são espelhos retorcidos. E o que nos mostram, a não ser quem somos?
E nessa estrada infindável, vejo, com esperança, que estão à minha frente, marcando o caminho com seu sangue impuro, deixando-o como esmola. Eles que estão tão perto, que já abandonaram-se ao destino, será que podem dar alguma notícia quando chegarem lá?

Suspiro

"O sol nasce mais uma vez a quem ainda pede perdão."
Com esta frase resoluta, encerrou a discussão, fechou seu livro de memórias e foi-se. Para sempre.
Ocaso de uma jornada, momento decisivo. A espera de todos. À espera de todos.

Quem já a viu, sabe. Eu estive ao seu lado e sei.
Ela já me acariciou com cantigas ninar. Não me despertou, permitiu-me continuar dormindo e sonhando uma vida.
Anos depois, o reencontro. Ríspido momento, cravou em meu coração um alívio e uma dor nunca imaginados. Seu vulto frio gelou minha espinha e ainda hoje, nas noites mais escuras sinto sua delicada respiração dizer-me: em breve. E me apavoro em perspectiva. O que é breve para alguém que conhece a eternidade?

sexta-feira, maio 22, 2009

BOM DIA

Rita

Os pensamentos da noite anterior não lhe deixavam a mente. Seu olhar esquivava a si própria. A imagem mal dormida já enchia-lhe a imaginação, não haveria necessidade de enfrentar a realidade fria do espelho. Por mais que sua auto-estima rastejasse naquela manhã, ainda haveria de ser mais condescendente que o próprio reflexo. Penteava seus cabelos lentamente, o ato mecânico, repetitivo; os dedos entre os finos fios sentiam a gordura que acumulara nesses dois dias. O olhar vidrado, opaco, fitava furtivamente uma imperfeição do espelho. Aquele ponto ferrugem maculando a superfície lisa e uniforme, seria o reflexo de um mundo imperfeito? Seria sua própria imperfeição, que impregnara-se ali? Tinha a impressão que estava maior que no dia anterior. Um câncer, que iria crescer, se alastrando e tomando conta de sua imagem, até ela própria não se reconhecer? Talvez isso. Talvez bobagem. Precisava sair.

Aquele início de resfriado não lhe deixava sentir o aroma do café que acabara de preparar. Tanto melhor. O gosto estava horrível. Porque diabos ainda lhe sobrava o paladar? Que esses vírus tomassem de assalto todos os seus sentidos de uma vez! Levassem também seus pensamentos. Ah, que vacina seria a gripe para a solidão.

Uma leve lufada deu-lhe consciência de sua semi-nudez. Aquele vento frio correu sua espinha até seu âmago, pedacinho de seu corpo que só lembrava que existia em dias como aquele. Ali, acima do estômago, abaixo do peito, onde não há órgão vital algum, naquela cavidade onde o vazio reverbera. Fechou os olhos e sentiu. Teve vontade de chorar. Cobriu sua incasta existência com a primeira peça que surgiu ao abrir o velho armário. O cheiro de naftalina causou-lhe um especial asco, como algum terror suicida. Que espécie era? O nojo de si mesma misturou-se a auto-piedade. Cruz credo!
Inspirou fundo. O ar de mofo do apartamento deu-lhe coragem para abrir a porta. Chamou o elevador sem vontade. Ele veio. A porta se abriu e, mesmo sem querer, teve de enfrentar a si mesma. As marcas de ontem, a perspectiva de hoje, tudo ali, profundamente vincado em olheiras. Penteou as sobrancelhas, esticou a roupa, estufou o peito. Libertou-se de si mesma no térreo, ali, nem no subsolo, nem no alto, ali, no térreo, se sentia melhor. Cinco passos, quatro palavras: Bom dia dona Rita! Apertou o passo, cerrou os ouvidos, passou. O azul do céu contrastou o cinza de sua alma. Ali, sob a luz do sol matinal, primaveril, vestiu, por fim, sua melhor roupa. Com a seda branca de um sorriso entrou no carro da amiga. Distribuiu palavras gentis, quis dividir toda sua felicidade, tirou um CD da bolsa e inundou o veículo com uma alegre melodia. Ouviu as queixas da amiga e com a propriedade dos sábios, agraciou-lhe com os melhores conselhos.

quinta-feira, abril 30, 2009

Chegue mais

Chegue um pouco mais poeta
Há algo a ser dito,
mas tenho vergonha que me escutem.

Faltam-me letras e nomes.
Em minha mente vagam conceitos disformes.
No coração apenas uma verdade enorme
Que me aperta o peito lá dentro.
Pudera, poeta, ter suas palavras cravadas em minha pele.
E a síntese rasgaria minha alma,
Os verbos expeliriam minha dor,
Substantivos, artigos e adjetivos
- Precisos, poeta, preciso -
Abririam o cárcere de um incomensurável amor.


Mas estou só
No vazio da ignorância.
Analfabeto, mudo e tenso.
Por que não me acode, poeta?

sexta-feira, fevereiro 06, 2009

Quero voltar a sentir

Quero voltar a sentir. Quero voltar a viver.
Caminho pensando em superfície. Ando pelo chão.
Não atinjo mais o inferno. Muito menos o céu.
Meus vôos cessarram. Meu rastejar cansou.
Meu coração não está mais vazio. Minh’alma está.
Pelo fogo, pelo vento e pelo nada, liberdade.
O que é amar? É sofrer. Ou por não Ter ou pela ausência da ausência.
É disso que sofro. Sinto falta de sentir-me vazio. Quão paradoxal é o espírito. Espreita a felicidade, bulina e consome. E acaba em si, no desejo, no querer.
Qual a essência da mediocridade? A felicidade? Determinismo puro, convincente.

Como criar algo se não tenho o que criar para meu espírito? Quero a dor. A minha dor solitária, causada por mim para mim. Assim me supero, assim sou.

Medo. Eis ele aí novamente. Meu medo é meu. É de mim.
Medo é uma potência. Inesgotável e reciclável. Some um, aparece outro. Ai, sofrer...
Agora contemplo que não existe objetivo para uma vida. Viver é padecer em desejos e anseios.

Acalantado meu coração, resfria meu espírito.

Sorte dos fracos e dos levianos. Eles vivem, eles gozam. Um gozo baixo, mas um gozo. Um gozo que recuso e que me enoja. Sorte deles, que vêem ouro no cobre. Que vêem nobre no tolo. Que se perfumam com o podre. Sorte.

Meu podre é meu demônio. É vazio e insípido. Não cheira, não fede, não sente. Apenas fere.

Por um sorriso profundo

Não desanime.
Que os seres sonham
Sonhos insanos
E o sono que nos varre
é a vida
Que visa desdenhar
o sonho dos seres.

Por isso não desanime.
Que tudo é vão, que todos vão
mas fica em nós o sangue,
as lágrimas
Que rolam e lavam,
que sonham e morrem.

Não desanime
Que solidão não é companhia
Que vem e vai
e pesa como cruz
É só você respirando seu sangue,
provando seu eu.

Por isso não desanime, não
Que o amor é pequeno
E tudo é breve
Mas saber que amar
é mais que um verbo, é mais que fazer
É ser, é sofrer,
É querer, é estar
é realmente Amar. – isso você sabe!

Quer motivo melhor para sorrir?

Acabou a música

Acabou a música.
Resta nos olhos um brilho obscuro;
Nos ouvidos um toque escuro
E nos lábios, um tremor impuro.
As rimas escassam, a dança convalesce.
O menino vê a rua, sente o cheiro da rua e teme.
O medo de amar, a vontade de vencer, a ilusão de viver.

Só existe a melancolia.
Só entra a tristeza
As palavras guardam-se para si
A inspiração transforma-se em um expirar cansado
O vazio resta.
Novamente me deito sobre ele, a antimatéria
Que desintegra até a luz divina numa explosão
Cega a estrela, transborda o infinito.

Nada faz sentido, nada convence
Nada é suficiente
O bom, o ruim, o mal, tudo desvanece
Resta o ser, ínfimo perante a dor carnal
Infinito em dúvida, perdido enfim.


Onde está Deus?
Em mim? Em Si?
É simplesmente ou ainda será
Parte que me amarra ao infindável
Ou que me liberta da finitude?
Por que há de haver o laço e aliança
Melhor seria sermos um
Nada me faltaria
Nada teria
Nada seria
E tudo, tudo se resumiria
Num mero olhar
Eterno olhar
A nada enxergar
Onde somem alegria, tristeza, prazer e dor
Vaidade, orgulho, humildade e valor
E que reste apenas a melancolia
Divina, o tudo saber, o tudo poder
E por compromisso assumido
Escritura assinada, bondade abismal
Nada fazer,
Senão olhar e quem sabe
Chorar
Lágrimas atemporais.

E em mim, esta tempestade persiste.
Por quê?

Pode o Verbo Divino soprar palavras aos mortais?

Por que a alegria não me traz palavras?
Quero mantê-la guardada em meu egoísmo
Narciso que sou.
E a dor, tristeza e ódio, compartilho convosco.
Carrasco que estou.

Devo cantar salmos, reger os anjos?
Desafiar o demônio, entregar-me a carne
Se a carne é difícil de digerir?

Devo ater-me ateu
Negando quem sou?
Ou hei de elevar-me e partir
Negando o que sou?

O choro contido, a dor ilusória
A negação da verdade e o amor, onde estão?

Por favor, venham verbos bons, substantivos celestes
Cheguem mais, não tenham medo, não sintam vergonha.
Porque dentro do meu coração vão perecer
Junto a carne transmutada em pó.
E aqui, no mundo dos homens serão imortais
Irônica contradição.
Saiam do espírito e sejam atemporais
Permaneçam com um filho de Deus e morram.

Pois, o que são as palavras, senão matéria?
Condenadas ao esquecimento, seja na dissolução do papel
Ou na morte da memória.

Mas que venham alegrar-nos um instante, este sim, imortal.